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Lectio Divina

O que é?

Os antigos monges da Igreja encontraram um método muito simples e eficaz de orar com a Bíblia, adaptado à vida de silêncio e intimidade com Deus que levavam. A tradição chamou tal método de “Lectio Divina”. Na verdade este método é a base de todos os outros que apareceram na história da espiritualidade, e continua sendo atual e eficaz, ainda que hoje há quem diga que o método tende a tornar mecânica a oração, demasiadamente metódico. Mas a Lectio não está superada.

Por Lectio Divina se entende uma leitura atenta e devota da Sagrada Escritura. O adjetivo “divina” é devido ao objeto da leitura: a Palavra de Deus. É uma leitura da Palavra feita num contexto de oração, para poder escutar aquilo que Deus quer nos dizer, para conhecer a sua vontade e viver melhor o discipulado.

A Lectio Divina deve nos levar a escavar, entrando sob a crosta do escrito, para descobrir aí o rosto de Deus. Não teorias, portanto, mas enamoramento. Quem pratica a Lectio, ensina Gregório Magno, pode chegar a atingir dois fins: a plenitude do livro ou a plenitude do Verbo. O primeiro diz respeito à compreensão da palavra escrita, enquanto que o segundo progride em direção à Palavra viva. “A oração não é um capricho do homem, mas é a vontade de Deus que a ela nos atrai, porque todo bom presente e todo dom vem do alto e desce do Pai da luz” (Tg. 1,17), sem o qual não podemos fazer nada, por isto é necessário que antes de iniciar a Lectio Divina devemos invocar o Espírito Santo, porque sem a sua ajuda, não é possível descobrir o sentido que a Palavra de Deus tem para nós hoje.

Os passos da Lectio

Guido II, Prior da  Grande Cartuxa (1173-1180),  descrevia o itinerário da Lectio Divina da seguinte maneira: « Procurai, lendo, e encontrareis, meditando; chamai, orando e abrir-se-vos-á pela contemplação». E, mediante bela metáfora, descreve  as etapas da «Lectio Divina»: « A leitura ( da Bíblia)  leva à boca o alimento sólido; a meditação corta-o e mastiga-o;  a oração saboreia-o, a contemplação é  doçura que alegra e recria».


1. INVOCATIO

Antes de abrir a Bíblia, ora ao Espírito Santo: recorda que a Palavra escrita no Espírito deve ser compreendida no Espírito. Podes invocá-lo com um canto, com palavras que fluem do teu coração, ou com a oração da Igreja: “Vinde, Espírito Santo, enchei os corações dos vossos fiéis, e acendei neles o fogo do vosso amor.

V. Enviai o vosso Espírito e tudo será criado.

R. E renovareis a face da terra.

2. LECTIO

Ler e reler com tranquilidade a página da Sagrada Escritura escolhida, sublinhando as palavras ou os elementos mais importantes (repetição de nomes, coisas, lugares) e perguntar-se: o que diz o texto em si mesmo?

3. MEDITATIO

É a fase do diálogo com o texto sagrado, perguntando-se: o que me diz o texto? É a fase em que se recolhe os textos paralelos ao texto escolhido, o momento de descobrir os valores e as mensagens espirituais da Palavra de Deus: é hora de saborear a Palavra de Deus e não apenas estudá-la. Você, diante de Deus, deve confrontar este trecho com a sua vida. A meditação, segundo Santa Teresa, consiste  em «discorrer muito com o entendimento».Por meditação entendemos  o esforço indispensável para descortinar as verdades contidas no texto proclamado. A  meditação tem como objetivo  responder à pergunta: «que me quer  Deus dizer»? Consiste, portanto, em  procurar  a verdade de Deus escondida no texto, à imagem de  Nossa Senhora, que «guardava todas as coisas no  coração».  Guido, o Cartuxo, descreve assim as duas primeiras etapas  da «lectio divina»: a «leitura busca; a meditação encontra. Entra pelo caminho aberto através da leitura e  encontras o que esta tinha procurado». Os Santos Padres  explicam  que a meditação da Palavra de Deus ajuda  a encontrar nela «   um alimento doce e nutritivo»,      como a abelha  que, depois de ter sugado as flores, fecha-se no seu favo e faz o mel de que todos beneficiam, pobres e ricos, nobres e humildes». S. Bernardo define a meditação com esta metáfora gráfica:: «Quando rumino docemente a Palavra de Deus,  inflamam-se minhas entranhas e fico saciado no meu íntimo». A meditação da Palavra desperta o  gosto  pela  «compreensão  das Escrituras e dos mistérios de Deus». A meditação pode-se valer de interpretações da Tradição da Igreja e outros “textos” que ajudam na penetração do texto. Trata-se de entrar no texto, verificar o que ele quer dizer, parando-se naquilo que toca, que fere. É o momento da scrutatio (coleta) e elaboração (ruminatio).

5. COLLATIO

É a partilha da meditação, colocando em comum as verdades tocantes que o texto revelou a cada um, quando a lectio se faz em grupo. É um modo de conferir com os outros as etapas do nosso percurso espiritual. Diziam os rabinos que a Bíblia tem cem rostos!. De fato, a partir do mesmo texto, o Espírito Santo pode sugerir a cada um diferentes experiências de fé. Na partilha dialogamos e partilhamos as experiências, saídas da meditação da  mesma Palavra do Senhor. A Bíblia  não  pode considerar-se propriedade exclusiva de ninguém. Pertence ao Povo de Deus, à Igreja, e só em comunidade de fé   sua leitura terá pleno significado. Para tal muito pode contribuir a partilha. Na Liturgia é toda a comunidade que escuta, normalmente, sem partilha. A leitura em grupo e nas assembléias  possibilita  a partilha  entre os membros das diferentes experiências de fé.  A partilha da Palavra,  contribui, além disso,  para a criação dum sentido comunitário da fé e  para intensificar a comunhão na  diversidade,  em Igreja.  Mas  nunca por nunca poderá conduzir à discussão, à ruptura. A Palavra de Deus não pode servir para a discussão, mas  antes para nos maravilharmos, ao verificar como Deus age em cada um de nós. .  Talvez por isso, Santo Isidoro   tenha afirmado que «a partilha é superior á leitura individual.

6. ORATIO

Toda boa meditação desemboca naturalmente na oração. É o momento de responder a Deus após havê-lo escutado. Esta oração é um momento muito pessoal que diz respeito apenas à pessoa e Deus. É um diálogo pessoal! Não se preocupe em preparar palavras, fale o que vai no coração depois da meditação: se for louvor, louve; se for pedido de perdão, peça perdão; se for necessidade de maior clareza, peça a luz divina; se for cansaço e aridez, peça os dons da fé e esperança. Enfim, os momentos anteriores, se feitos com atenção e vontade, determinarão esta oração da qual nasce o compromisso de estar com Deus e fazer a sua vontade. Momento de perguntar-se: o que o texto me leva a dizer a Deus? Antes era Deus a falar-me, agora sou eu a responder-lhe.        A oração constitui a terceira etapa  ou degrau da «lectio divina». Depois da leitura e meditação «ruminada», o leitor  sobe a outro patamar,  ao patamar da oração.  De acordo com  a etimologia , orar é estar boca a boca com Deus., um dialogo intimo e pessoal com o Senhor. O leitor e ouvinte da Palavra, torna-se-á necessariamente orante.  Orar é o iluminar de luz interior os divertículos do coração. A oração passa por diversos graus, desde a simples oração vocal até à oração contemplativa,. Mas constitui sempre dom de Deus. Ela é gratuita, não se mede por palavras, mas por atitudes que brotam de dentro de nós, quando conscientes da intimidade com Deus. Quem ouve e medita a Palavra do Senhor, não pode deixar de agradecer ao Deus que nos fala. Da meditação  brota  vontade de orar.   Santo Agostinho  recorre a um belíssimo  trocadilho:«quando lês, é Deus que te fala; quando oras, falas tu a Deus». A oração surge do encontro do «coração» do homem com o «coração» de Deus, por mediação da sua Palavra».. A oração situa-se no centro da  resposta do homem à Palavra  do Senhor. Pela oração entra na  experiência Deus  Pai (ABBA). O cristão, como Maria, ora a Deus com a Palavra de Deus».

7. CONTEMPLATIO

Desta etapa a pessoa não é dona. É um momento que pertence a Deus e sua presença misteriosa, sim, mas sempre presença. É um momento no qual se permanece em silêncio diante de Deus. Se ele o conduzirá à contemplação, louvado seja Deus!Trata-se do momento em que se começa a ver o mundo e a vida com os olhos de Deus, assumindo a verdade dEle. Aparentemente,   oração e contemplação,  seriam uma mesma coisa. Situada na linha  da oração, a contemplação indica todavia  etapa diferente. Está num grau mais elevado. Exprime a meta da via espiritual, em que  a criatura se une ao  Criador. É o termo da escalada do monte onde Deus habita, o Sinai e o Tabor do  encontro pessoal com o Senhor. É a «alegria de viver só para Deus», na expressão de Santo Isidoro. Quando  alguém «conhece e compreende, quer e anela, saboreia somente a Deus», experimenta a contemplação.  Contemplar não significa tanto  um novo olhar acerca do mundo, mas consiste em nos sentirmos olhados e amados por Deus1. Para Guido, o Cartuxo,  a oração tende à contemplação: «Batei e abrir-se-vos-á pela contemplação». Quanto mais pura e afetiva for a oração, mais cedo desembocará na contemplação. Neste mundo, para a alma crente, a contemplação é a mais sublime dádiva do amor divino, a  felicidade do amante humano, porque introduz o homem no mistério do  amor de Deus, a expressão suprema da felicidade do homem em Deus.  De qualquer modo,  é a partir  do olhar contemplativo, que se aprofunda  nova  visão do mundo e  a vontade  de o transformar.

8. OPERATIO

Depois do nosso discernimento sobre a realidade pessoal, eclesial e social segundo o ponto de vista de Deus, nasce um empenho concreto de vida para realizar-se na vida cotidiana: a ânsia e a alegria da evangelização, da missão e da promoção humana no território da nossa Igreja local, porque o contemplativo é um evangelizador que, depois da escuta da Palavra, como Maria, “com tanta ânsia, coloca-se em viagem”. Para os antigos  a «lectio divina» culminava na contemplação do mistério de Deus, A meta da vida cristã consistia em viver angelicamente na presença de Deus!. A «lectio divina», processo cristão da leitura divina e escuta da Palavra, não pode  fechar-se na interioridade. Deve levar à conversão,  através do testemunho de vidas comprometidas ao serviço de Deus e dos outros  (Lc. 10,28). A Palavra de Deus conduz «a sabedoria do coração», isto é, a uma vida com Deus e em Deus,  que  implica   compromisso sério pela edificação do Seu Reino e pela  transformação do mundo. O «encontro com Deus, segundo S. Bento, leva o cristão ao encontro dos irmãos e faz dele um «irmão  útil».. suscitando novos profetas, possuídos de dinamismo  evangelizador. A contemplação torna-se fermento de transformação humana, social, política. Efetivamente, percorridos os caminhos do Espírito, há que passar à banalidade do quotidiano, descer da montanha divina à planície humana. O cristão deve, portanto,  abundar em boas obras. Assim demonstrará  que o compromisso da «Lectio divina» corresponde ao compromisso com a eficácia da Palavra de Deus (Atos 2, 37).A Palavra de Deus lida e partilhada,  a sós ou em grupo, força a tomar posição, perante Deus e perante o mundo criado. Disso nos advertia Santo Agostinho: «Prestai atenção, irmãos,  porque nesta passagem bíblica se trata precisamente de vós. O contacto com a palavra de Deus, que fecundou a terra do  coração com a chuva  fecundante da Palavra  torna o cristão homem rico em boas obras (Is. 55,11). A ação passa a ser testemunho, compromisso, vida vivida, partilhada, e é isso que faz a força da palavra de Deus lida, meditada, rezada, contemplada.  Pelos obras externas os cristãos começam a exteriorizar naturalmente aquilo de que estão interiormente  possuídos.         Numa hermenêutica existencial,  não se pode ler a Bíblia apenas  como documento histórico, mas como Palavra que Deus me dirige a mim, aqui e agora., forçando-me a tomar posição, diante dEle e do mundo criado. Termino com uma nota bíblica, que contém certo humor para os judeus. Um  judeu estudante do Talmud dizia ao rabino, seu Mestre::«Rabbi, já não sou ignorante: já entrei muitas vezes dentro do Talmud». Ao que respondeu o rabino: «Mas quantas vezes deixaste tu entrar o Talmud dentro de ti»? Aí está. O importante não está em entrar muitas vezes na Bíblia, lendo-a e meditando-a. Mais importante será  conseguir que a Bíblia entre dentro de nós, como recomenda a Dei Verbum (11 e 21):

«É tão grande o poder e a força da Palavra de Deus, que constitui sustento e o dinamismo da Igreja, firmeza de fé para os seus filhos, alimento da alma, fonte límpida e perene de vida espiritual». (DV 11 e 21). Ou lembrar a recomendação da Paulo:«O Evangelho é a força de Deus para salvação de todos os que crêem» (Rm 1,16). Com estas disposições,  este caminho da «lectio  divina» conseguiremos que a Palavra de Deus se torne « fogo purificador» (Is.6,6-7); chuva fecunda que faz efeito (Is. 55,10-11);«gozo e alegria do coração» (Jer. 15, 16); «força sedutora e fogo ardente» (Jer. 20,7-9); «alimento» (Mt.4,4).

Fonte: http://www.carmelo.com.br/default.asp?pag=p000105


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“LECTIO DIVINA” COM OS SEMINARISTAS

PALAVRAS DO PAPA BENTO XVI

Capela do Seminário
Sexta-feira
, 12 de Fevereiro de 2010

Eminência
Excelências
Queridos amigos

Cada ano é para mim uma grande alegria encontrar-me com os seminaristas da Diocese de Roma, com os jovens que se preparam para responder ao chamamento do Senhor para ser trabalhadores na sua vinha, sacerdotes do seu mistério. Esta é a alegria de ver que a Igreja vive, que o futuro da Igreja está presente inclusive nas nossas terras, precisamente também em Roma.

Neste Ano sacerdotal, desejamos estar particularmente atentos às palavras do Senhor, relativas ao nosso serviço. O trecho do Evangelho que acabou de ser lido fala de maneira indirecta, mas profundamente, do nosso Sacramento, da nossa chamada a permanecer na vinha do Senhor, a ser servidores do seu mistério.

Neste breve trecho, encontramos algumas palavras-chave, que dão a indicação do anúncio que o Senhor quer fazer mediante este texto. “Permanecer”: neste breve trecho encontramos dez vezes a palavra “permanecer”; em seguida, o novo mandamento: “Amai-vos uns aos outros, como Eu vos amei”, “Já não sois servos, mas amigos”, “Dai frutos”; e finalmente: “Pedi, rezai, e ser-vos-á dado, ser-vos-á concedida a alegria”. Oremos ao Senhor a fim de que nos ajude a compreender o sentido das suas palavras, para que estas palavras possam penetrar o nosso coração e, deste modo, possam ser caminho e vida em nós, connosco e através de nós.

A primeira palavra é: “Permanecei em mim, no meu amor”. O acto de permanecer no Senhor é fundamental, como primeiro tema deste trecho. Permanecer: onde? No amor, no amor de Cristo, no acto de ser amados e de amar o Senhor. Todo o capítulo 15 concretiza o lugar do nosso permanecer, porque os primeiros oito versículos expõem e apresentam a parábola da videira: “Eu sou a videira, e vós os ramos”. A videira constitui uma imagem veterotestamentária que encontramos tanto nos Profetas, como nos Salmos, e contém um significado dúplice: trata-se de uma parábola para o povo de Deus, que é a sua vinha. Ele plantou uma videira neste mundo, cultivou esta videira, cultivou a sua vinha, salvaguardou esta sua vinha, e com que intenção? Naturalmente, com a intenção de encontrar o fruto, de encontrar a dádiva inestimável da uva, do vinho bom.

E deste modo manifesta-se o segundo significado: o vinho é símbolo, é expressão da alegria do amor. O Senhor criou o seu povo para encontrar a resposta do seu amor e assim esta imagem da videira, da vinha, contém um significado esponsal, é expressão do facto de que Deus se põe em busca do amor da sua criatura, deseja entrar num relacionamento de amor, numa relação esponsal com o mundo através do povo por Ele eleito.

Mas sucessivamente, a história concreta é uma história de infidelidade: em vez de uva preciosa, são produzidas só pequenas “coisas não comestíveis”, não chega a resposta deste grande amor, não nasce esta unidade, esta união incondicional entre o homem e Deus, na comunhão do amor. O homem retira-se em si próprio, quer dispor de si mesmo unicamente para si, quer ter Deus para si mesmo, quer ter o mundo para si próprio. E assim, a vinha é devastada, vêm o javali do bosque e todos os inimigos, e a vinha torna-se um deserto.

No entanto, Deus não se rende: Deus encontra um novo modo para chegar a um amor livre, irrevogável, ao fruto de tal amor, à verdadeira uva: Deus faz-se homem, e desta maneira torna-se Ele mesmo raiz da videira, torna-se Ele próprio a videira, e assim a videira faz-se indestrutível. Este povo de Deus não pode ser destruído, porque o próprio Deus entrou nele, implantando-se nesta terra. O novo povo de Deus está realmente fundamentado no próprio Deus, que se faz homem e deste modo nos chama a ser n’Ele a nova videira, e chama-nos a estar, a permanecer n’Ele.

Além disso, tenhamos presente o facto de que, no capítulo 6 do Evangelho de João, encontramos o discurso a respeito do pão, que se torna o grande discurso acerca do mistério eucarístico. Neste capítulo 15, encontramos o discurso sobre o vinho: o Senhor não fala de maneira explícita da Eucaristia mas, naturalmente, por detrás do mistério do vinho encontra-se a realidade de que Ele se fez fruto e vinho para nós, que o seu sangue é o fruto do amor que nasce da terra para sempre e, na Eucaristia, o seu sangue torna-se o nosso sangue, e nós somos renovados, recebemos uma nova identidade, porque o sangue de Cristo se torna o nosso sangue. Assim, tornamo-nos parentes de Deus no Filho e, na Eucaristia, torna-se realidade esta grande efectividade da videira, em que nós somos ramos unidos ao Filho e desta forma unidos com o amor eterno.

“Permanecei”: permanecer neste grande mistério, permanecer neste novo dom do Senhor, que fez de nós um povo em si mesmo, no seu Corpo e com o seu Sangue. Parece-me que temos de meditar muito a respeito deste mistério, ou seja, sobre o facto de que o próprio Deus se torna Corpo, um connosco; Sangue, um connosco; que nós podemos permanecer – permanecendo neste mistério – na comunhão com o próprio Deus, nesta grande história de amor, que é a história da verdadeira felicidade. Meditando acerca desta dádiva – Deus fez-se um com todos nós e, ao mesmo tempo, faz de todos nós um só, uma videira – também temos que começar a rezar, a fim de que este mistério penetre cada vez mais na nossa mente e no nosso coração, e assim tornamo-nos cada vez mais capazes de ver e de viver a grandeza do mistério, e deste modo de começar a pôr em prática este imperativo: “Permanecei”.

Se continuarmos a ler atentamente este trecho do Evangelho de João, encontraremos também um segundo imperativo: “Permanecei” e “Observai os meus mandamentos”. “Observai” é apenas o segundo nível; o primeiro é o do “permanecer”, o nível ontológico, ou seja, o facto de que estamos unidos a Ele, que se nos doou antecipadamente a si mesmo, entregando-nos o seu amor, o fruto. Não somos nós que temos de produzir o grande fruto; o cristianismo não é um moralismo, não somos nós que temos de realizar aquilo que Deus espera do mundo, mas em primeiro lugar temos que entrar neste mistério ontológico: Deus entrega-se a si mesmo. O seu ser, o seu amar precede o nosso agir e, no contexto do seu Corpo, no âmbito do estar com Ele, identificados com Ele, enobrecidos com o seu Sangue, também nós podemos agir com Cristo.

A ética é consequência do ser: primeiro, o Senhor confere-nos um novo ser, esta é a grande dádiva; o ser precede o agir e a partir dele segue-se, depois, o agir, como uma realidade orgânica, porque o que somos, podemos sê-lo também na nossa actividade. E deste modo damos graças ao Senhor porque nos tirou do puro moralismo; não podemos obedecer a uma lei que está diante de nós, mas simplesmente temos que agir em conformidade com a nossa nova identidade. Por conseguinte, não é mais uma obediência, algo exterior, mas sim uma realização do dom do novo ser.

Digo-o mais uma vez: demos graças ao Senhor, porque Ele nos precede, nos dá aquilo que nós mesmos temos que doar, e sucessivamente nós podemos ser, na verdade e na força do nosso novo ser, protagonistas da sua realidade. Permanecer e observar: o observar é o sinal do permanecer, e o permanecer constitui o dom que Ele nos oferece, mas que deve ser renovado todos os dias na nossa vida.

Depois, segue-se este novo mandamento: “Amai-vos uns aos outros, como Eu vos amei”. Não existe amor maior do que este: “Dar a vida pelos próprios amigos”. Que significa? Também aqui, não se trata de um moralismo. Poder-se-ia dizer: “Não é um novo mandamento; o mandamento de amar o próximo como a nós mesmos já existe no Antigo Testamento”. Alguns afirmam: “Este amor deve ser ainda mais radicalizado; este amar o outro deve imitar Cristo, que se entregou por nós; deve ser um amar heróico, até ao dom de si mesmo”. Porém, neste caso o cristianismo seria um moralismo heróico. É verdade que temos de chegar até a esta radicalidade do amor, que Cristo nos manifestou e concedeu, mas também aqui a verdadeira novidade não é aquilo que nós levamos a cabo, a verdadeira novidade é o que Ele realizou: o Senhor entregou-se a si mesmo, o Senhor conferiu-nos a verdadeira novidade de sermos seus membros no seu corpo, de sermos ramos da videira, que é Ele. Por conseguinte, a novidade é a dádiva, o dom grandioso, e é do dom, da novidade do dom que provém inclusive, como eu disse, o novo agir.

S. Tomás de Aquino di-lo de maneira muito específica, quando escreve: “A nova lei é a graça do Espírito Santo” (Summa theologiae, i-iiae, q. 106, a. 1). A nova lei não é outro mandamento, mais difícil do que os demais: a nova lei é um dom, a nova lei é a presença do Espírito Santo que nos foi concedido no Sacramento do Baptismo, na Crisma, e que nos é oferecido cada dia na Santíssima Eucaristia. Aqui, os Padres distinguiram entre “sacramentum” e “exemplum”. “Sacramentum” é o dom do novo ser, e este dom torna-se também exemplo para o nosso agir, mas o “sacramentum” vem antes, e nós vivemos a partir do sacramento. Aqui vemos a centralidade do sacramento, que é centralidade da dádiva.

Continuemos a nossa reflexão. O Senhor diz: “Já não vos chamo servos, pois o servo não sabe o que faz o seu senhor. Chamei-vos amigos, porque tudo quanto ouvi do Pai vo-lo dei a conhecer a vós”. Já não sois servos, que obedecem ao mandamento, mas amigos que conhecem, que estão unidos na mesma vontade, no mesmo amor. Portanto, a novidade é que Deus se fez conhecer, que Deus se manifestou, que Deus não é mais o Deus desconhecido, procurado mas não encontrado, ou apenas adivinhado à distância. Deus fez-se ver: vemos Deus no rosto de Cristo, Deus fez-se “conhecido”, e deste modo tornou-nos amigos. Pensemos na história da humanidade, em todas as religiões arcaicas, as pessoas sabem que existe um Deus. Este é um conhecimento imerso no coração do homem, que Deus é um só, e os deuses não são “o” Deus. Mas este Deus permanece muito distante, parece que não se deixa conhecer, não se deixa amar, não é amigo, mas está distante. Por este motivo, as religiões ocupam-se pouco deste Deus, a vida concreta ocupa-se dos espíritos, das realidades concretas que encontramos todos os dias, e as quais temos que avaliar diariamente. Deus permanece distante.

Em seguida, vemos o grande movimento da filosofia: pensemos em Platão, Aristóteles, que começam a intuir como este Deus é o agathón, a própria bondade, é o eros que move o mundo, e todavia este permanece um pensamento humano, constitui uma ideia de Deus que se aproxima da verdade, mas é uma ideia nossa e Deus permanece o Deus escondido.

Há pouco tempo, escreveu-me um professor de Regensburg, um docente de física, que tinha lido com grande atraso o meu discurso na Universidade de Regensburg, para me dizer que não podia estar de acordo com a minha lógica, ou só podia parcialmente. Ele disse: “Sem dúvida, convence-me a ideia de que a estrutura racional do mundo exige uma razão criadora, a qual realizou esta racionalidade que não se explica por si mesma”. Depois, continuava: “Mas se pode existir um demiurgo assim se exprime um demiurgo parece-me garantido a partir daquilo que o senhor diz, mas não me parece que exista um Deus amor, bom, justo e misericordioso. Posso ver que existe uma razão, que precede a racionalidade do cosmos, mas não o restante”. E assim Deus permanece-lhe escondido. Trata-se de uma razão que precede as nossas razões, a nossa racionalidade, a racionalidade do ser, mas não existe um amor eterno, não há a grande misericórdia que nos permite viver.

E eis que, em Cristo, Deus se manifestou na sua verdade total, mostrou que é razão e amor, que a razão eterna é amor e assim cria. Infelizmente, também hoje muitos vivem distantes de Cristo, não conhecem o seu rosto e deste modo a eterna tentação do dualismo, que se esconde também na missiva deste professor, renova-se sempre, ou seja, que talvez não haja unicamente um princípio bom, mas também um princípio perverso, um princípio do mal; que o mundo está dividido, e são duas realidades igualmente fortes: e que o Deus bom é apenas uma parte da realidade. Também na teologia, compreendida a católica, difunde-se actualmente esta tese: Deus não seria omnipotente. Deste modo procura-se uma apologia de Deus, que assim não seria responsável pelo mal que encontramos amplamente no mundo. Mas que pobre apologia! Um Deus não omnipotente! O mal não está nas suas mãos! E como é que poderíamos confiar-nos a este Deus? Como poderíamos ter a certeza do seu amor, se este amor termina onde começa o poder do mal?

Mas Deus já não é desconhecido: no rosto de Cristo Crucificado vemos Deus, e vemos a verdadeira omnipotência, não o mito da omnipotência. Para nós homens, a potência, o poder é sempre idêntico à capacidade de destruir, de cometer o mal. Todavia, o verdadeiro conceito de omnipotência que se manifesta em Cristo é precisamente o contrário: nele, a verdadeira omnipotência consiste em amar até ao ponto em que Deus pode sofrer: aqui aparece a sua verdadeira omnipotência, que pode chegar ao ponto de um amor que sofre por nós. E desde modo vemos que Ele é o Deus verdadeiro, e o Deus verdadeiro que é amor, poder: o poder do amor. E nós podemos confiar-nos ao seu amor todo-poderoso e viver nele, com este amor omnipotente.

Penso que temos de meditar novamente sobre esta realidade, dar graças a Deus porque Ele se manifestou, porque lhe conhecemos o rosto, face à face; não é mais como Moisés, que só podia ver o Senhor de costas. Também esta é uma bonita ideia, da qual São Gregório de Nissa diz: “Ver só as costas quer dizer que temos de caminhar sempre atrás de Cristo”. Mas ao mesmo tempo, através de Cristo, Deus mostrou a sua face, o seu rosto. O véu do templo rasgou-se, abriu-se, o mistério de Deus é visível. O primeiro mandamento que exclui imagens de Deus, porque elas só poderiam diminuir a realidade, mudou, renovou-se, adquiriu uma outra forma. Agora, no homem Cristo, podemos ver o rosto de Deus; podemos ver o ícone de Cristo e assim ver quem é Deus.


Penso que quem compreendeu isto, quem se deixou sensibilizar por este mistério, que Deus se revelou, rasgou o véu do templo e mostrou o seu rosto, encontra uma fonte de alegria permanente. Só podemos dizer: “Obrigado! Sim, agora sabemos quem és Tu, quem é Deus e como Lhe devemos responder”. E penso que esta alegria de conhecer Deus que se mostrou, que se manifestou até ao íntimo do seu ser, implica inclusive a alegria do comunicar: quem compreendeu isto, vive sensibilizado por esta realidade, deve fazer como fizeram os primeiros discípulos, que vão ter com os seus amigos e irmãos, dizendo: “Encontrámos aquele de quem falam os Profetas. Agora, Ele está presente”. A missionariedade não é algo exteriormente acrescentado à fé, mas constitui o dinamismo da própria fé. Quem viu, quem encontrou Jesus, deve ir ter com os próprios amigos e dizer-lhes: “Nós encontrámo-lo, é Jesus, o Crucificado por nós”.

Em seguida, continuando, o texto acrescenta: “Constituí-vos para irdes e dardes fruto, e para que o vosso fruto permaneça”. Deste modo, voltamos ao início, à imagem, à parábola da videira: ela é criada para dar fruto. E qual é o fruto? Como já dissemos, o fruto é o amor. No Antigo Testamento, com a Torah como primeira etapa da auto-revelação de Deus, o fruto era compreendido como justiça, ou seja, viver em conformidade com a Palavra de Deus, viver segundo a vontade de Deus, e assim viver bem.

Isto permanece, mas ao mesmo tempo é ultrapassado: a verdadeira justiça não consiste numa obediência a algumas normas, mas é amor, amor criativo, que encontra sozinho a riqueza, a abundância do bem. Abundância é uma das palavras-chave do Novo Testamento, pois é o próprio Deus quem dá sempre em abundância. Para criar o homem, cria esta abundância de um cosmos imenso; para redimir o homem, Ele entrega-se a si mesmo, na Eucaristia dá-se a si próprio. E quem está unido a Cristo, quem é um ramo da videira, vive desta lei, e não pergunta: “Ainda posso fazer isto, ou não?”, “Devo fazer isto, ou não?”, mas vive no entusiasmo do amor que não questiona: “Isto ainda é necessário, ou proibido?”, mas simplesmente na criatividade do amor, quer viver com Cristo e por Cristo, e entregar-se inteiramente a si mesmo por Ele, e deste modo entrar na alegria do ser fecundo. Tenhamos também em mente o que o Senhor diz: “Constituí-vos para irdes”: trata-se do dinamismo que vive no amor de Cristo; ir, ou seja, não permanecer somente para mim, ver a minha perfeição, garantir para mim a felicidade eterna, mas esquecer-se de mim mesmo, ir como fez Cristo, ir como fez Deus, a partir da sua imensa majestade até à nossa pobreza, para encontrar o fruto, para nos ajudar, para nos conceder a possibilidade de produzir o verdadeiro fruto do amor. Quanto mais repletos estivermos desta alegria de ter descoberto o rosto de Deus, tanto mais o entusiasmo do amor será autêntico em nós e produzirá fruto.

E finalmente chegamos à última palavra deste trecho: “Eis quanto vos digo: “Tudo aquilo que pedirdes ao meu Pai em meu Nome, Ele vo-lo concederá””. Uma breve catequese sobre a oração, que nos supreende sempre de novo. Duas vezes, neste capítulo 15, o Senhor diz: “Aquilo que pedirdes, vo-lo concederei”, e mais uma vez no capítulo 16. Quanto a nós, gostaríamos de dizer: “Mas não, Senhor, não é verdade”. Quantas orações boas e profundas de mães que rezam pelo filho que está a morrer, e não são atendidas, muitas preces para que aconteça algo de bom e o Senhor não responde. O que significa esta promessa? No capítulo 16, o Senhor oferece-nos a chave para compreender: Ele diz-nos quanto nos oferece, o que é tudo isto, a chará, a alegria: se alguém encontrou a alegria, encontrou tudo, e vê tudo à luz do amor divino. Como São Francisco, que compôs a grandiosa poesia a propósito da criação numa situação desolada, e no entanto precisamente ali, próximo do Senhor que sofre, voltou a descobrir a beleza do ser, a bondade de Deus, e então compôs esta grande poesia.

É útil recordar, ao mesmo tempo, também alguns versículos do Evangelho de Lucas, onde o Senhor, numa parábola, fala da oração dizendo: “Se já vós, que sois maus, sabeis oferecer coisas boas aos vossos filhos, quanto mais o vosso Pai que está nos Céus vos concederá o Espírito Santo, a vós que sois seus filhos”. O Espírito Santo no Evangelho de Lucas é alegria, e no Evangelho de João é a própria realidade: a alegria é o Espírito Santo, e o Espírito Santo é a alegria ou, por outras palavras, a Deus não peçamos algo pequeno ou grande, mas de Deus invoquemos o dom divino, o próprio Deus; esta é a grandiosa dádiva que Deus nos concede: o próprio Deus. Neste sentido, temos que aprender a rezar, a orar pela grande realidade, pela realidade divina, para que Ele se conceda a si mesmo a nós, nos ofereça o seu Espírito, e assim possamos corresponder às exigências da vida e ajudar os outros nos seus sofrimentos. Naturalmente, é o Pai-Nosso que no-lo ensina. Podemos rezar por muitas coisas; em todas as nossas necessidades podemos orar: “Ajuda-me!”. Isto é muito humano e, como vimos, Deus é humano; por conseguinte, é justo rezar a Deus também pelas pequenas coisas da nossa vida de todos os dias.

Mas ao mesmo tempo, rezar é um caminho, diria uma escada: temos que aprender cada vez mais pelo que podemos rezar e pelo que não o podemos fazer, porque tais coisas constituem expressões do meu egoísmo. Não posso rezar por coisas que são nocivas para os outros, não posso orar por coisas que contribuem para o meu egoísmo, a minha soberba. Assim rezar, diante dos olhos de Deus, torna-se um processo de purificação dos nossos pensamentos, dos nossos desejos. Como diz o Senhor na parábola da videira: temos que ser podados, purificados todos os dias; viver com Cristo, em Cristo, permanecer em Cristo, é um processo de purificação, e só neste processo de lenta purificação, de libertação de nós mesmos e da vontade de termos apenas a nós próprios, está o verdadeiro caminho da vida, abre-se a vereda da alegria.

Como já pude mencionar, todas estas palavras do Senhor têm uma base sacramental. A base fundamental para a parábola da videira é o Baptismo: somos implantados em Cristo; e a Eucaristia: somos um pão, um corpo, um sangue, uma vida com Cristo. E assim, também este processo de purificação tem uma base sacramental: o sacramento da Penitência, da Reconciliação, em que aceitamos esta pedagogia divina que, dia após dia, ao longo de uma vida, nos purifica e nos torna cada vez mais membros do seu corpo. Deste modo podemos aprender que Deus responde às nossas preces, responde frequentemente com a sua bondade também às orações pequenas, mas muitas vezes também as corrige, transforma e orienta, para podermos ser final e realmente ramos do seu Filho, da videira autêntica, membros do seu Corpo.

Demos graças a Deus pela grandeza do seu amor, oremos a fim de que nos ajude a crescer no seu amor, a permanecer realmente no seu amor.


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